domingo, 10 de abril de 2011

Relatos

Deitou-se cedo, como de costume. Era sexta-feira. Não precisaria acordar às seis horas no dia seguinte, como fazia durante a semana; ainda assim, preferiu dormir àquela hora para não perder o ritmo. Estava velha, já não tinha a mesma disposição de outros tempos e, ultimamente, sentia aquela dor nas costas que estava lhe matando. Custava um pouco a dormir. Costumava ficar pensando no que havia acontecido durante o dia.
Marina trabalhava, há alguns anos, como faxineira na casa de um advogado – gente com grana – como ela dizia. Nunca conversou algo muito pessoal com ele nem com ninguém da família. Suas conversas se resumiam à quantidade de açúcar no café ou ao que deveria ser limpo primeiro. Nunca ninguém perguntou quem ela realmente era ou do que gostava de fazer ou se tinha filhos ou netos. Às vezes, duvidava que se lembrassem do seu nome. Nunca lhe deram um presente de aniversário.
No início do dia, havia ido um homem instalar um novo arcondicionado na casa. Depois de terminar o trabalho, parou para tomar um cafezinho na varanda e fumar um cigarro. Marina, que estava no seu intervalo, sentou-se na mesa com o senhor. Havia simpatizado com ele – parecia gente humilde que nem ela. Resolveu conversar – não teria nada a perder:
- Muito tempo trabalhei em empresa de cigarro.
- É mesmo? E a senhora gostava de trabalhar lá?
- No início não. Era muito difícil. Eu trabalhava direto com o fumo. E tinha vários tipos de fumo. A gente tinha que saber a diferença pra separar. Eu consegui a vaga porque a gente plantava fumo lá fora.
- A senhora não é daqui?
- Não. A gente morava pra fora de Santa Maria. O pai tinha uma fazendinha onde a gente plantava de um tudo: milho, fumo, feijão, mandioca. Foi aí que eu aprendi a lidar com o fumo. Eu queria mesmo era ter continuado os estudos. Fiz até a quarta série. Eu tinha uma tia muito rica – a tia Marieta . Ela se ofereceu pra me sustentar pra estudar num colégio de freira. Eu fiquei tão feliz.
- E por que a senhora não foi?
- Bem que eu queria. Mas não é que eu inventei de comentar com a prima que eu tava doida pra namorar, que ia namorar nem que fosse um padre.
- E ela contou pra sua tia?
- A diaba contou pra minha mãe mesmo. Ela ficou tão braba. Eu disse, “então tá, não vou estudar, mas na fazenda eu não fico”. Me fui pra Santa Cruz com meu irmão, o Tobias. Ele trabalhava numa fruteira.
- E a senhora na fábrica de fumo?
- E eu na fábrica de fumo. Foi lá que eu conheci o Romeu. O Romeu trabalhava comigo no setor do cigarro mesmo. Isso foi já depois de um ano trabalhandodireto com o fumo. O Romeu foi o grande amor da minha vida. Toda sexta a gente ia no cinema e depois ele me levava pra tomar um sorvete. A gente ficava até tarde conversando sobre a vida. A gente fazia planos – queria casar, ter filhos. Teve um dia que ele me levou no baile da cidade. Foi a noite mais bonita da minha vida. Ele todo charmoso de terno e eu de vestido. Nunca tinha usado um vestido de festa que nem aquele.
- E vocês continuaram juntos por muito tempo?
- Não. O Romeu logo consegui um emprego em São Paulo. No início, a gente trocava carta toda semana. Mas o tempo foi passando, passando, e a gente foi perdendo afinidade. Até que um dia eu escrevi e ele nunca mais me respondeu. Acabei vindo pra Porto Alegre pra tocar minha vida por aqui e nunca mais ouvi falar do meu Romeu.
- Poxa, que pena , Dona Marina. Mas eu tenho que ir. Obrigado pelo cafezinho.
A lembrança da conversa se misturava com as vozes que vinham da rua. Marina estava naquele estado do início do sono em que o sonho se mistura com o que acontece no entorno. Mas aos poucos, tudo foi silenciando, ficando calmo. A dor que sentia nas costas passou. Estava no campo, na fazenda do seu pai. Lá longe, ia sua mãe com um cesto de verduras nas costas. Seguiu andandando até a sua casa. Entrou na sala. Romeu estava lá – o seu Romeu – vestido com o mesmo terno da noite do baile. E ela estava com aquele mesmo vestido azul que a Tereza tinha emprestado. Romeu sorria pra ela do mesmo jeito que sempre fizera. Continuava o mesmo – não tinha envelhecido nada. Marina correu até ele e deu um abraço. Ele a apertou firme. Segurou-a pela cintura, e falou bem baixinho no seu ouvido:
- Minha pequena, eu voltei.
Ela se arrepiou toda. Era assim que ele sempre a chamava. Ele enfim havia voltado. Ela sabia que era apenas um sonho. Mas ela entendeu também, no momento em que lhe beijou, que não precisaria mais se preocupar em acordar. O seu Romeu havia, finalmente, vindo lhe buscar.

domingo, 3 de abril de 2011

Das coisas concretas.

Às vezes, conveço-me de que Saint-Exupery estava certo: “ O essencial é invisível aos olhos”. Deparamo-nos, o tempo todo, com imagens, sons, cheiros, sensações. Vivemos e convivemos com a tangibilidade dos fenômenos e, mesmo assim, é aquilo que assiste por trás dessa tangibilidade que realmente importa. Toda forma se degrada,todo som termina, todo cheiro se dilui. Nada fica. A matéria se transforma rápido demais, praticamente convulsiona. E o pior é que pouco podemos controlá-la. Às vezes, penso que a maioria das pessoas é como peixes tirados da água, que ficam se debatendo com a realidade em busca de uma fagulha de felicidade que possa manter seus espíritos vivos por mais um segundo.
Quantas pessoas passam por nós e se vão? A imagem, o corpo, a matéria, se vão. Mas as lembranças, os amores, os carinhos, as saudades ficam - empregnam-se em nossas mentes e marcam-nos com facas afiadas como quem crava suas iniciais nas rochas e árvores. O que nos une, nos conecta – seja aos nossos amigos, aos nossos familiares, namoradas,namorados - é o amor, a alegria , o carinho. É como se uma imensa e complexa rede emaranhasse nossas trajetórias. As pessoas até se vão, mas a rede continua - se entrelaçando – nos conectando todos. A rede fica. O amor fica. As pessoas vão. Os corpos vão. Os conceitos sempre se dissolvem no final.
Títulos não significam conhecimento, nem competência. Dinheiro não significa felicidade. Companhia não significa ausência de solidão. Estar sozinho não significa solidão. Chorar não significa tristeza. Ser budista não significa ser iluminado. Sexo não significa pecado. Moral não significa virtude.
Adoramos classificar coisas, dar títulos, dar rótulos, criar conceitos. Tudo o que importa é aquilo que transcende isso. Conceitos, títulos e rótulos são importantes- tornam a vida prática, objetivam as idéias. Mas tem momentos que precisamos ultrapassar os limites da praticidade – e , então, os conceitos, os rótulos, as imagens, o tangível, tornam-se dipensáveis. É como atravessar o rio com uma canoa. Depois que você atravessa o rio, você não continua levando a canoa nas costas. Você deixa ela na margem. Deixemos os conceitos e os rótulos no que lhes cabe – a vida prática – e compartilhemos algo um pouco maior, mais sensível, mais subjetivo, mais íntimo.
Não quero coisas concretas – quero, antes, o delírio do intangível.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Lei de Hubble

“Ficar lúcido – é só o que importa”, foi o que me disseram numa mesa de bar. São nossas percepções, nossas crenças, nossos modelos, que nos fazem sofrer. Dentro de nossos modelos, criamos expectativas, projeções, interpretações da realidade. E, quando essas interpretações são muito distorcidas, quando projetamos demais desejos e vontades próprias, que, de forma alguma, se encontram presentes nos fatos, em algum momento, a discrepância entre o que acreditamos ser a realidade e a forma como ela se apresenta será grande o suficiente para pegar todas as nossas ilusões e fantasias e queimá-las impiedosamente. A vida não tem piedade. Ela é. Ela se apresenta. Não pede licença para nos esbofetear.
Talvez eu tenha levado a sério demais o conselho da raposa: “tu te tornas responsável por tudo aquilo que cativas”. Eu não pedi paixão, eu não pedi interesse, eu não pedi carinho. Mas me cativaram e nem sempre de maneira responsável. E ,logo, já salta um exemplo de um modelo interno que criei. A responsabilidade não está em lugar nenhum. Eu presumi que ela existiria. Daí a importância de estar lúcido, de reconhecer nossos padrões, nossas ilusões. Não era disso que Gautama falava? Pra que os mantras, as orações, as reverências? Sou mundano demais pra ser budista – não consigo acreditar em cartilhas pré-fabricadas. Acho que o processo de transformação é muito íntimo e subjetivo - uma transformação orgânica demais – para ser tão generalizado.
Não sei qual é a razão disso tudo. Convenço-me, cada vez mais, que a vida é uma grande ilusão, um sonho, um delírio. Somos a loucura manifesta. Criamos amarras, âncoras, correntes. Prendemo-nos, ou pensamos que nos prendemos, a pessoas , a lugares, a religiões, a grupos. Tudo delírio. No fundo, tudo carece dessas amarras, tudo é vazio de prisões. E assim, deveríamos ser também. Talvez o segredo seja existir como o Universo: vazio (de amarras) em expansão.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Na Casa de Cultura Mário Quintana

Foi depois de beber o segundo gole de café que percebeu já estar ali há um pouco mais de meia hora. Não esperava ninguém. Há muito tempo, já não esperava ninguém. Acostumara-se com a solidão. Havia virado uma grande apreciadora dos cafés, dos bons restaurantes, dos cinemas de Porto Alegre. Lia muito,frequentava os teatros e os concertos. Primeiramente, achou que estava apenas saboreando seu café; depois, percebeu que, há alguns minutos, não pensara em nada, nem reparara no gosto forte da bebida na sua boca. Olhou para o lado, viu uma moça bonita terminando seu lanche. Até então, não havia nem reparado na sua presença
Tomou mais um gole de seu café. Envelhecera sozinha. Acostumara-se com a amargura do café, com a amargura de sua própria vida. Quando moça, havia passeado por aquelas mesmas ruas, mas elas eram mais coloridas, tinham mais vida, da mesma forma que ela também tinha. Não conseguia determinar quando começou a ficar sozinha. Talvez tenha sido um processo tão paulatino que nem percebera. Quando viu, estava velha – velha e sozinha.
Já não tinha mais sonhos,nem paixões. Há muito tempo, esquecera-se do amor. Já evitava ler romances. Não se sentia uma mulher infeliz, era apenas um pouco só. Queria ter tido filhos, netos, tê-los visto crescer, se formar na faculdade. Queria ter feito doces para esperá-los nos fins de semana.
Sua vida não era ruim. Tinha um bom salário, morava num bom apartamento, podia viajar quando quisesse, embora não fizesse isso há alguns anos. Deixou-se estar na cadeira, por alguns instantes, vazia, oca. Depois, tomou o resto do café, já frio, de uma só vz. Pagou a conta e foi embora.